quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

RPG e ficção social deviam ser indissociáveis

Algo que me tem atraído nos últimos tempos, digamos nos últimos 4 ou 5 anos, é a ficção social. O termo surge pela caneta de Ursula LeGuin ao chamar ficção científica social às suas obras, porque vai beber muita da inspiração às ciências sociais, como antropologia, linguística, estudos culturais, sociologia, psicologia. No entanto, o termo é um pouco mais antigo que isso, e pode ser revisto em ombras como Fahrenneit 451, de Ray Bradbury, 1984, de George Orwell, Brave New World, de Aldous Huxley, e o pai deles todos, We, do russo Yevgany Zamyatin; embora nestes possa ser também encontrada uma crítica às sociedades onde os seus escritores estavam inseridos, é igualmente provável encontrar neles um estudo e uma especulação do comportamento humano.

Este tipo de ficção tem-me atraído porque cada vez menos me revejo no tipo de ficção que versa apenas o universo, ou a tecnologia, ou que acompanha unicamente o herói na sua demanda para salvar o país, o mundo, ou a galáxia muito, muito distante. Não me interpretem mal: gosto tanto de Star Wars e de Lord of the Rings como toda a gente: devo ter visto cada um deles perto de dez vezes, o que me coloca naquele patamar médio entre "não é uma pessoa normal" e "é completamente viciado". No entanto, em análise, este tipo de ficção é copiada vezes sem conta e torna-se a norma.

Agora prefiro muito mais a nova Galáctica, por exemplo, onde episódios inteiros são passados num tribunal de humanos a julgar humanos, em vez de no espaço a lutar contra Cylons, o "verdadeiro" inimigo. Divirto-me imenso a ver as Desperate Housewives, onde em cada episódio há uma complicação pessoal, um drama qualquer, sem se tornar um dramalhão, adoro ver a Rome com a política romana bem explorada..., mas não me divirto tanto a ver o House, onde cada episódio é um mistério que o personagem do mesmo nome tem que resolver, como um Sherlock Holmes da medicina, e com pouco contacto com o mundo humano sem ser a sua personalidade casmurra e arrogante.

No roleplay os meus gostos são idênticos, e dou por mim muitas vezes a iniciar conversas deste género, ou a insistir com os jogadores para que me mostrem os gostos e vontades dos seus personagens, ou a falar com o mestre de jogo para que oriente a campanha neste sentido.

Foi o que aconteceu durante uma campanha de Exalted, onde peguei numa regra e a tornei ponto de honra: por cada objectivo pessoal cumprido, o personagem ganhava 5xp; depois havia os jogadores que tinham uma lista de objectivos pessoais, que tanto davam cor e vida ao jogo (mesmo que fosse só para que o seu personagem fosse mais poderoso que os outros) e havia outros que estavam perdidos e não sabiam o que por na lista (talvez porque esse tipo de jogo não lhes interessasse tanto!), mas a maioria tinha uma saudável lista permanente de 4 ou 5 objectivos que perseguiam avidamente, dando-me material mais que suficiente para lhes atirar adversidade.

Este tipo de mecânica é brilhantemente usada num jogo que serve de base a um universo de jogo a ser desenvolvido nesta casa, o The Shadow of Yesterday, com a sua mecânica de Keys que coloca o foco total e completamente nas escolhas do jogador: é o que jogador que diz ao mestre de jogo onde e quando ganhar a sua experiência, o que interessa ao seu personagem, e aquilo que lhe fará ter as reacções que mudam e fazem crescer personalidades. Uma Key tem sempre duas ou três condições que, quando verificadas, dão xp ao personagem, e uma outra condição, a de Buyoff, que muda por completo o personagem, mas que lhe dá 10xp, o máximo que pode receber dessa Key.

Este tipo de sistemas reflectem a ficção social ao garantirem que o foco está no personagem e nas suas escolhas, e não no bónus da sua espada. Notem que menciono especificamente sistema, e não grupos de jogo: como referi acima, o Exalted é practicamente sobre quantos Charms a personagem tem e qual o tamanho da sua Daiklaive, mas nós jogávamos mais o lado pessoal que o lado material, muito por imposição minha.

Também me parece que este é o modo jogado por omissão pela maioria dos jogadores, embora este seja um facto díficil de confirmar. Contudo, os actual plays que leio em vários sites de referência, tanto portugueses como estrangeiros, as conversas que tenho com vários amigos em pessoa ou online, parecem apontar nesse sentido. Se assim for, porque é que estes sistemas não são a norma em vez da excepção mal-amada? Porque é que, em cada sistema de jogo publicado, novo ou antigo, o foco é nas intermináveis listas de feitiços, armas e perícias, apesar de o modo de jogo ser o oposto?

Eu julgo que é pelas raízes tácticas do roleplay, que levaram a que a grande maioria dos jogos que seguiram ao clássico Chainmail tenham optado por um modelo muito mais mecânico e menos orgânico, menos social e menos pessoal. Daí as listas de poderes, de armas, de perícias, comuns em tantos outros jogos que facilmente se apanham em qualquer loja da especialidade, e que muitas vezes nem sequer são sobre uma qualquer sociedade pseudo-medieval. Vide os jogos da White Wolf, anunciados como terror gótico, mas que têm capítulos inteiros dedicados aos poderes. É mais fácil manter um estilo de jogo já enraízado, com sessões a fazer lembrar missões de Operações Especiais, do que mudar (ou desenvolver!) um estilo de jogo mais virado para o drama pessoal; no fim de contas, dramas pessoais já nós temos na nossa vida real, o que conta para outra razão para os jogos desenvolvidos sejam assim: é preferível jogar alguém com poder para mudar o mundo do que um zé-ninguém a braços com um cancro e abandonado pela mulher. Eu ainda prefiro o Homem-Aranha ao Super-Homem.

Gostava sinceramente que os próximos jogos em desenvolvimento tivessem mais o tipo de mecânicas que falo atrás, ainda que não sejam sobre telenovelas dramalhonas, mas que, sendo sobre salvar o mundo, houvesse uma razão mais humana para o fazer.

4 comentários:

JRNMariano disse...

É interessante o modo como na tua perspectiva a especulação social quase antropológica deste tipo de ficção se mistura com o tipo de narrativas onde o crescimento pessoal dos personagens é bastante desenvolvido ou exposto.

Se fores como eu, talvez não te interesse só o desafio mental de pôr em causa as estruturas sociais vigentes mas também o desafio social dos personagens que nelas vivem, quer acabem por mudar irreversivelmente essa sociedades por suas próprias, mudem por completo a percepção que delas têm ou sejam esmagados pela necessidade forte de conformismo ou regularização por elas impostas.

É de notar também que a Battlestar Galactica é uma daquelas séries "dramáticas" que agarra a audiência não só pelos personagens bem delineados como também devido seu universo ficcional ser um reflexo "negro" da nossa sociedade actual, das suas apreensões, medos e conlitos característicos da natureza humana. No aspecto social não especula muita a não ser que aceitemos que seja o seu tema principal o da inevitabilidade do condicionamento da existência humana pela própria natureza do homem. Contudo a presença dos andróides, das questões sociais que estes levantam e os vislumbres da sua sociedade talvez levem um pouco à tal especulação.

Efectivamente, questionar as causas das interacções humanas através da especulação social não é algo confortável e seguro para a maioria dos jogadores de RPG pois os seus propósitos lúdicos muitas vezes são apoiados na familiaridade do jogadores com o universo fantástico onde o seus personagens coabitam e na facilidade em reforçar os seus pontos de contacto com o "mundo" em questão.

Talvez seja por isso que eu tenha dificuldade em convencer muitas pessoas a experimentarem os jogos Tribe 8, Sky Realms of Jorune, Transhuman Space, Noumenon ou Mouse Guard!

Um jogo cujo foco é efectivamente a ficção social (se mais orientada para a "científica")e a especulação de toda a sociedade baseada em problemáticas escolhidas pelos próprios jogadores é o Shock: Social Science Fiction do Joshua A.C. Newman (http://www.glyphpress.com/shock/). Contudo o jogo não é muito legível e é um pouco vago.

Como já referi anteriormente eu gostava mesmo é de um rpg que misturasse o desafio desconstutor da ficção social com o toque profundo das estórias humanas baseadas na mudança interior do personagem. Talvez um pouco de Shock com The Shadow of Yesterday!:P

rkd disse...

O modo de jogo mais popular é justamente o das intermináveis listas de feitiços, armas e perícias (jogado por pessoas que nem sequer sabem o que é um actual play).

Para mim, a questão mais polémica é: um RPG precisa de mecãnicas sociais?

Ambos estamos de acordo que um RPG deve ter um sistema que apoie integralmente aquilo que o jogo quer fazer. Se é para aprender feitiços, incendiar criaturas demoníacas e recolher os seus artefactos, há que haver mecãnicas para isso. Se é para explorar o drama de sermos corrompidos pelo mal tentando proteger aqueles que amamos, também há que haver mecãnicas que suportem esse tipo de jogo. Na minha experiência - e julgo que também na tua - o sistema muitas vezes serve como um marcador que sublinha aquilo que está a acontecer na sessão, selectionando e processando aquele input dos participantes que é mais relevante para o tipo de RPG que se está a jogar.

O que muita gente argumenta (e faço aqui um pouco o papel de advogado do diabo) é que essa coisa de "modos de jogo" não existe e que um RPG, por definição, é um jogo sem limites - uma verdadeira folha em branco - que pode envolver os seus participantes em qualquer tipo de situação, independentemente desta ser mais ou menos suportada pelo sistema.

Desse ponto de vista que não é o meu, a razão pela qual existem certas regras para certas coisas - e para outras quase não existirem - é simplesmente por um motivo prático de tentar resolver essencialmente apenas os desafios de índole física/mental, deixando os desafios de índole social para o que se chama de "verdadeiro roleplay". O "verdadeiro roleplayer" não pode ter essas mecãnicas a perturbar a sua imersão. Não pode ter um sistema que limite a sua mui pessoal interpretação do seu personagem.

Agora, tirando o chapéu de advogado do diabo, acho que simplesmente é mais difícil pensar socialmente num jogo do que pensar matematicamente na melhor combinação atributo+golpe+arma que deriva das tais listas intermináveis. O sistema que surge na esfera social vem sublinhar essa dificuldade, passando a haver contexto e consequências nas regras - regras perante as quais as pessoas sentem que estão a ser avaliadas e, por isso, ficam menos à vontade para roleplayar.

Rui Anselmo disse...

Eu costumo variar entre dois pontos:

1 - Existam mecânicas para aquilo que se quer fazer naquele jogo

2 - Existam apenas mecânicas para resolver acções físicas, ficando tudo o resto às custas do jogador, mas que se puxe ao máximo pela melhor combinação

Neste momento estou terrivelmente inclinado para o 1º ponto; se jogasse Exalted, Feng Shui, ou qualquer outro jogo onde teria um bónus mecânico pelas descrições, provavelmente estaria inclinado para o 2º.

Anónimo disse...

"Como já referi anteriormente eu gostava mesmo é de um rpg que misturasse o desafio desconstutor da ficção social com o toque profundo das estórias humanas baseadas na mudança interior do personagem. Talvez um pouco de Shock com The Shadow of Yesterday!:P"

Caro JRNMariano, acredito que a mecânica de Shock: (risking a link) é perfeita para simular o lado "pessoal" do protagonista. Mas é justo que você prefira uma abordagem mais centrada no conceito de "keys" do SoY. Shock está saindo na versão 1.2 agora, e segundo o Joshua os ajustes deixam o jogo mais fluido e fácil. Shock: é diferente, acredito ser mais um "Story Game" de ficção científica social que lida com uma rede de "coletividades sociotécnicas" cujos elementos se afetam reciprocamente no jogo (não existe gamemaster em Shock:), do que um RPG, que é geralmente centrado na direção de um personagem ligado fortemente a um único jogador.